Vidas sem rostos, mortes sem luto

Quais eram as histórias dos 86 mortos nas chacinas nos presídios em Manaus e em Roraima? Quem eram esses sujeitos? Brancos, pretos, índios, pardos? Quem vai se enlutar por eles? Não sabemos, mas na gestão da violência em nosso país, alguns sujeitos são apenas números.

“Não havia nenhum santo”, declarou o governador do Amazonas. Onde os há? Devemos perguntar. Se houvesse qualquer tipo de santidade em mim, em você que me lê e no próprio governador, não haveria necessidade de Direito, de Estado e de Justiça, humanamente criadas para gerir essa miríade de trajetórias chamada humano. Se fôssemos santos, não seriam necessárias essas instituições, a própria santidade seria suficiente para gerir nossas vidas.

Enunciados como o feito pelo governador são comuns em nosso cotidiano e vêm acompanhados de outros como “Tá com pena leva pra casa”, ou com o teor da postagem do Major Olímpio, em que comemora o massacre no Norte do país e desafia os presidiários de Bangu a fazer o mesmo. Eles são sintomáticos de uma forma de olhar para esses sujeitos, isto é, de olhá-los como não sujeitos, ou como sub-sujeitos, como aqueles que não merecem ter uma vida vivida e cuja morte não fará falta.

Esses discursos se materializam em formas de gestão da violência, em ações concretas do Estado na lida com essas pessoas, todas legitimadas pelos discursos sociais em oferta todos os dias em nossos jornais e nas redes sociais. Por isso, queremos, ainda que de uma forma breve e incompleta, discutir, a partir desses casos, a questão da gestão da violência em nosso país, tendo como norte a pergunta, “quem vai chorar essas mortes?”

carandiru-840x547
Foto do Massacre do Carandiru: Quem eram esses sujeitos?

Sobre Precariedade da vida

Definir a vida é algo que o debate filosófico faz há milênios e com respostas variadas, por isso, não é nosso intuito defini-la aqui, já que isso nos traria a um debate bastante amplo e com inúmeras possibilidades. Contudo, é preciso de alguma forma dar conta, senão de uma definição de vida, ao menos da condição de estar vivo em nossa sociedade. Dessa forma, partimos da definição proposta por Judith Butler em “Quadros de Guerra”, no qual ela afima que a vida de todos os seres humanos é marcada pela sua precariedade.

A precariedade da vida pode ser definida como a vulnerabilidade que cada um de nós tem ao estar vivo, sejam os riscos de doença, desastres, enfim, pela sua fragilidade, como diz a autora: “Viver é sempre viver uma vida que é vulnerável desde o início e que pode ser colocada em risco ou eliminada de uma hora para outra a partir do exterior e por motivos que nem sempre estão sob nosso controle”.

Essa condição compartilhada de precariedade nos traz ao menos dois pontos. O primeiro é de que nossos corpos são sociais e interdependentes, já que essa é uma condição compartilhada para além de classes. O segundo é o problema político, pois a precariedade, apesar de compartilhada, possui diferenças: podemos dizer que existem populações, grupos mais precários que outros, que podemos chamar de grupos precarizados.

É nesse ponto que retomamos a pergunta que fizemos acerca das mortes nos presídios: “quem vai chorar essas mortes?”. O que aconteceu em Roraima e no Amazonas não foram acidentes, mas parte de uma perspectiva do Estado Brasileiro que atua na precarização de determinadas populações. As mortes não foram por acaso, mas foram parte de uma política pública, ainda que não declarada, de controle da população mais pobre.  É o Estado atuando dentro daquilo que enuncia Foucault: “o direito de fazer viver e deixar morrer”.

Essas mortes não são passíveis de luto, pois essas vidas tiveram seu estatuto de existência roubados, tiveram seu estatuto de sujeitos reduzidos a pó. Presidiários não são considerados sujeitos, por isso, podem ser exterminados. É uma lógica de funcionamento de determinadas elites sociais, amparadas pelo estado que mantêm essas populações à margem de qualquer acesso aos direitos básicos. Como diz Butler: “Essas populações são ‘perdíveis’, ou podem ser sacrificadas, precisamente porque foram enquadradas como já tendo sido perdidas ou sacrificadas; são consideradas como ameaças à vida humanas como a conhecemos, e não como populações vivas que necessitam de proteção contra a violência ilegítima do Estado, a fome e as pandemias. Consequentemente, quando essas vidas são perdidas, não são objeto de lamentação, umas vez que, na lógica distorcida que racionaliza sua morte, a perda dessas populações é considerada necessária para proteger a vida dos ‘vivos’”.

Essa deliberada separação entre ‘nós’ e ‘eles’ cria os elementos suficientes para a legitimação dessas mortes, gerando falas como “matou foi pouco”, ou torcidas para que o número seja ainda maior, ou, ainda, a demonização da luta pelos direitos humanos. Os discursos que circulam em nossa sociedade fazem com que nos tornemos parte desse processo, trabalhando na produção e controle dos afetos – em especial o “medo” –, e fazem com que essa população precarizada torne-se inimiga da sociedade e passível de sofrer a violência tanto física quanto simbólica de forma legitimada por todos nós.

Esse gerenciamento do “medo” casado com as políticas de aumento da precarização provindas do Estado criam o substrato ideal para que essas mortes em presídios e, tantas outras, nas favelas e na periferia sejam possíveis. É o que fala Wacquant: “A penalidade neoliberal apresenta o seguinte paradoxo: pretende remediar com um ‘mais Estado’ policial e penitenciário o ‘menos Estado’ econômico e social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva(…)”.

Ou seja, quando o governo anuncia a construção de mais presídios, ele não atua na causa do aumento da violência, nem repensa seu papel ante as chacinas, ele apenas reproduz a sua lógica interna de possibilitar que novos casos aconteçam, porque, no fim das contas, eles são desejados para a “higienização” da sociedade.

Enfim, é preciso que o Estado pare de atuar como agente de morte e precariedade e repense seu papel ante essa questão. Pois, nesse momento, ele age como o PCC na determinação de quais vidas são mais vidas. Dar as mínimas condições de vida e proteção é o mínimo que se pode esperar de um Estado, sob a pena de ele perder toda a sua legitimidade. Cabe a todos nós repensarmos o estatuto dos sujeitos em nossa sociedade, pois enquanto alguns sujeitos não tiverem rostos, a vida deles não será passível de luto.

Textos de referência:

  • Michel Foucault – Em Defesa da Sociedade
  • Judith Butler – Quadros de Guerra
  • Loic Wacquant – As Prisões da Miséria
  • Vera Malagutti – O Medo na Cidade do Rio de Janeiro

Deixe um comentário