O ser humano nunca foi tão livre quanto no nazismo

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Texto sobre o Existencialismo de 40

Parte I – Sartre

 Os filósofos iluministas estenderam as bandeiras da liberdade de forma mais evidente dentro da tradição filosófica no início da Idade Moderna. No entanto, a liberdade investigada naquele contexto racionalista se restringia às questões de natureza política. Pouco se discutia sua essência ontológica enquanto tal. Foi Jean-Paul Sartre (1905-1980), filósofo francês, quem trouxe tal conceito para o bojo efervescente do existencialismo, defendendo, na época da ascensão totalitária, a hipótese de que a liberdade estava impregnada dentro do ser consciente como moléstia terminal, causando-lhe a sua essência, a sua única e verdadeira prisão e os seus mais íntimos algozes.
Para Sartre, “o homem está condenado a ser livre”. E, na liberdade, está confinado. Não há como existir livre disso. Até porque escolher não escolher é, por ironia, um pleno exercício de escolha.
Para entender o título e abordar a temática do texto, a liberdade, precisamos recorrer a alguns conceitos Sartrianos.

O Nada, o Vazio, a Inexistência

 Para o Sartre, o ser vive em função do Nada e, a partir disso, constitui-se. Então, neste momento, precisamos definir o que é o nada. É bom saber que nada não existe enquanto absoluto de si mesmo. Ou seja, sua substância, que é a inexistência, está condicionada a uma existência concreta. Em outras palavras, o nada é nada de alguma coisa. O nada é a noção mais súbita e completa da falta. O nada (ou a inexistência, ou o vazio) se constitui como a inexistência de alguma coisa que existe, ou seja, o nada mostra seu vazio levando consigo o lampejo demente de alguma coisa que não está presente em sua forma existencial imediata. O nada é, portanto, a ausência notável que floresce no ser e o alaga com sua angústia. É a sensação de vazio. Para melhor ilustrar isso, vamos fazer um exercício de lógica. Eu não consigo fazer uma pergunta a uma pessoa, querendo que a resposta dela seja o nada, se eu não condicionar a inexistência, que será a sua resposta, a uma existência concreta. Se eu te pergunto, por exemplo: “vai viajar com quem?” Você me responde, “com ninguém”. O ninguém aqui é o nada correspondente a alguma coisa, no caso, uma pessoa. Se eu te pergunto, “comeu o que”? Você vai me responder: “não comi nada”. De novo, o nada apareceu condicionado a existência de alguma coisa, no caso, uma comida. Terceiro e último exemplo, “no que você acredita?” “Não acredito em nada”, o nada aqui apareceu como a inexistência de uma crença. O nada, portanto, não é absoluto em si mesmo, nem indicativo de si mesmo, ele é uma abstração condicionada à noção de falta.

A Angústia

 A angústia é um estado de consciência marcado pela experienciação direta do nada. É uma dor latente, um mal estar que se arrasta em reverência ao vazio. Em um contexto autoconsciente, o nada aparece como o não ser, ou seja, como aquilo que o ser não é. O não ser é, portanto, do ponto de vista do ser, seu vazio, sua falta. E essa inexistência, que surge no ventre do ser, causa-lhe o fenômeno da angústia. Portanto, a angústia é um verme que nasce no cerne do ser e provoca o estado de desespero, desesperança e tédio existencial. E o vazio, ou o não ser, pode ser entendido de diversas formas. Para nota de exemplo, caso um sujeito seja feio, seu não ser é a beleza, e isso é também seu vazio, sua angústia. O mesmo com a inteligência, ou com a riqueza, ou com as virtudes, enfim. Fazendo uma breve digressão, talvez por isso, nesta época em que o ser é cobrado a reconhecer sua falta de maneira intensa e constante por culpa das pressões sociais motivadas pela lógica de mercado, a tentativa de preencher o vazio tenha alcançado níveis patológicos. Enfim, trazendo essa discussão para a questão da liberdade, ou seja, para a escolha, a angústia se manifesta no nada em que as outras opções não escolhidas representam. Em outras palavras, escolher é sacrificar opções. É escolher tornar uma opção o verdadeiro nada. É escolher alguma coisa em detrimento de outras. É escolher o que irá existir e o que irá inexistir. E, nesse inexistir, jorra-se a angústia. Em vista disso, podemos, como exercício de imaginação, pensar a escolha como um fenômeno espaço-temporal relativístico, no qual as veredas das possibilidades se bifurcam. Algumas possibilidades, por culpa da escolha, se realizam na concretude, naquilo que chamamos de realidade, e outras, por culpa da escolha, tornam-se objetos do mundo das ideias, do mundo hipotético, no qual emanam a substância da angústia que dilacera o ser. Tais circunstâncias poderiam ter sido e não foram, portanto, são o nada. Daí o mal estar, a angústia.
Para fins didáticos, fazendo um resumo, o nada é sempre o nada de alguma coisa, pois não é indicativo de si mesmo, ou seja, o nada só é definido a partir da falta de alguma coisa, e a angústia, um mal estar, é um estado de consciência marcado pela experimentação do nada.

O Contexto Histórico do Existencialismo da Década de 40

 Costuma-se dizer que o existencialismo é, antes de um movimento intelectual, um espírito de época. Isso pois, diante da desilusão em meio às duas grandes guerras que arruinaram os grandes idealismos da Europa na primeira metade do século XX, o existencialismo, que já havia surgido no início do século XIX com Søren Kierkegaard, tomou corpo e ficou famoso, transformando-se em um acontecimento pop. Os temas como angústia, desilusão e tédio existencial, abordados por essa literatura filosófica, estavam em ressonância com o pensamento da época. Além disso, diante de tanta barbárie, a dificuldade de enxergar sentido na vida, assim como para os pensadores existencialistas, difundiu-se como uma segunda peste negra, o que ajudou a fortalecer um dos alicerces do movimento existencialista francês da década de 40, o desamparo. E visto que a primeira metade do século XX provocou variados dilemas morais, éticos e existenciais para a cultura mundial, os representantes desse movimento intelectual na época -em especial o próprio Jean-Paul Sartre, a Simone de Beauvoir e o Albert Camus -fizeram de suas próprias filosofias reflexos de seu tempo. A angústia da escolha de Sartre, como irei abordar de maneira mais detalhada no último tópico, reflete o caráter catastrófico da liberdade em tempos difíceis.
O espírito fascista, inclusive, fez sua marca em todo um século. Não apenas a literatura, mas as outras formas de arte e filosofia também reagiram à barbárie daquela época. O cinema, por exemplo, produziu o gênero noir, um dos mais influentes do cinema, que deu origem aos filmes atuais dos gêneros policial e serial killer. O noir encarnava o espírito pessimista de sua época e, com isso, causava identificação. Ele traduzia em sua estética o hálito da carnificina que pairava sobre os edifícios da Europa e suas consequências imediatas. Do ponto de vista plástico, o noir investia em contrastes entre o claro e o escuro para provocar tensão. Seus personagens eram cínicos e viviam em submundos rodeados de pessoas igualmente cínicas. É nesse período que surgem no cinema os grandes anti-heróis, pois os expectadores já não acreditavam em personagens repletos de virtudes e valores que se mostravam incorruptíveis diante do medo.

A Liberdade

 Para Sartre, liberdade é a liberdade de escolha. E, diante disso, o ser se constitui, pois é nas suas escolhas que é fabricada sua essência, ou seja, o ser constrói a si mesmo. Tal noção está descrita em duas das frases mais famosas de Sartre, “a existência precede a essência” e “O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo”. O que Sartre quis dizer é justamente isso, o ser primeiro existe para depois ter essência, pois a essência é oriunda da liberdade, das escolhas.
Visto que Sartre é produto de seu tempo e que formulou suas teorias inspirado pela carnificina nazista e seus dilemas consequentes, irei, aqui, transformar os conceitos abstratos de Sartre em uma pequena narrativa para torná-los vivos, concretos e dinâmicos, reconstruindo parte do sentimento da época no qual tais ideias foram cunhadas. Sentimento este de miséria existencial. E como adendo, a minha narrativa, apesar de não fazer referência direta a nenhuma história real, é um exemplo comum de tantas histórias iguais a essa que aconteceram no período dominado pelo terceiro Reich.
Imagine que você é um chefe de uma família tradicional francesa constituída, além de você, de uma mulher, um filho e mais três filhas. Você mora em Paris. E como costumavam dizer nesses tempos, a frança já não é mais a mesma. Há uma atmosfera cinzenta diluída entre as nuvens negras, que dá náusea, pairando sobre o torre Eiffel e enferrujando sua estrutura. Alguns de seus amigos dizem que, de fato, a frança será ocupada pelos nazistas. Não há escapatória. Não há esperanças. Há uma diferença entre ser esperançoso e ser idiota. E, por isso, as pessoas preferem ficar em casa, escondendo-se. Quase não veem pessoas andando pelas ruas do bairro onde moram. Esse bairro de casas humildes está fedendo a mofo. Parece fantasma. Está abandonado. A indiferença dos dias frios de Paris ficou mais evidente. E nos jornais, há apenas morte e pessimismo, portanto, mais frio. Mata-se por pouco. E quando você sai para o trabalho e vai conversar com os colegas, contam-lhe histórias macabras que aconteceram com conhecidos. Histórias de famílias francesas, de certas regiões, que esconderam famílias judias dentro de suas casas e, por isso, foram mortas à sangue frio. Não há perdão para traidores da causa. E a história que lhe contam, de forma mais detalhada, é assim: primeiro, em frente ao pai de família, os soldados do exército nazista, que acabaram de invadir a casa, estupraram a mulher e as filhas. Estavam eles, os soldados, cobertos pela luxuria, enlouquecidos pelos prazer da carne. Um frenesi descontrolado. Não há mulheres que acompanham o exército e suas esposas estão muito longe. Portanto, quando encontram a oportunidade, procuraram se satisfazer. E quanto se satisfaziam, o faziam da forma animal, rompendo seus próprios tabus. Na guerra, não há regras, tampouco pudores. Depois de feito, deram-lhe tiros nas cabeças de feições humilhadas, que rolaram pelo chão após o trauma. O pai assiste tudo. Está vidrado, incrédulo. Ele nem sabe mais quem é. Uma teia complexa de sentimentos que misturam ódio, vergonha, impotência, dor, culpa, indignação, desesperança passam pelo seu ser em um turbilhão introspectivo. Tais sentimentos se condensam em uma loucura efervescente, que cresce e cresce. O homem vê, diante de si, o sentido de sua vida ruir como uma viga podre de uma casa embolorada. Na parede, há o sangue escorrido de seus familiares. Eles eram e agora não são. Para onde foi aquele sorriso da sua mulher e a brincadeira dos filhos? Para onde foi aquela substância que anima a matéria e os faz tornar um ser? Toda aquela história agora é apenas memória. Para aonde foi, não se sabe. Apenas o que se sabe é que eles se encerraram há alguns instantes atrás. Não há perdão, resta apenas a súbita vontade de morrer. Uma história trágica.
E então, você, o chefe de família, volta para casa impressionado. Pensa nisso por algumas noites e, por isso, perde mais horas de sono. Perde as poucas horas de sono que a insônia lhe poupou. Então, um mês depois, Paris começa a ser ocupada pelos nazistas. As tropas aparecem nas ruas e fazem a vistoria. De um dia para o outro, transformaram-se em donos da cidade. Eles são imponentes com seus trajes pretos de guerra carregando no braço a suástica hemorrágica que estampa o temor. Pisam forte no chão com botas pretas sujas de barro. E então, para devastar o resto de seu sono, uma família amiga, vizinha, de membros que você conhece há anos, que, inclusive, têm filhos que cresceram junto com seus filhos, te pede ajuda. Eles são Judeus. E Judeus estão sendo mortos de forma brutal. O que vale para a história das famílias de Franceses que tiveram seus laços desgraçados pelo sadismo, vale também para a família do Judeu e para a sua. Seus amigos Judeus estão desesperados. O pai já não tem mulher. É apenas ele e as duas filhas. Uma de quinze e outra de doze. E na guerra, não há conceitos motivados pela moralidade, como a pedofilia. O pai delas sempre foi um sujeito bondoso e sério. Um sujeito muito forte, que sempre aguentou as adversidades e que parecia não desfalecer diante do inesperado. No entanto, ao te pedir ajuda, chorou. Aquilo foi estranho, alienígena, irreconhecível. Você não sabia que de dentro daquele sujeito bondoso, porém sisudo, havia aquela possibilidade derrotada e desesperada que se desfazia em lágrimas sulfúricas ao ver diante de si o terror. Nem parecia o mesmo homem. Ele lhe suplicou ajuda, de joelhos. É impressionante o que um ser humano é capaz de fazer quando se desvincula de sua dignidade por motivos últimos, como a morte. Você não soube o que fazer. Ficou sem graça, sentindo a responsabilidade de uma resposta. E então, você diz que vai pensar. Amanhã dará uma resposta definitiva. Você volta para a casa e deita na cama, sentindo-se mal, péssimo, com um gosto de náusea espalhado pela língua. Sua mulher não está no quarto, porque foi dormir com os filhos, porque os barulhos de tiro na madrugada assustam seus meninos. Então, estava você, lá, sozinho. Só você, a madrugada inteira e os tic tacs do relógio. Tic tac que pareciam tiros. O tempo queria correr e amanhecer, mas você não. Amanhã, pela manhã, terá que tomar uma decisão. Terá que decidir se é um traidor dos nazistas ou de seus afetos.
E então, aqui, sabemos o que Sartre quis dizer com angústia, com liberdade e com o nada.
Amanhã, terá, você, que fazer uma decisão. Terá de escolher e essa escolha pressupõe angústia. Uma escolha será validada como real e a outra será angústia, será o nada, aquilo que não é, que não foi. Caso escolha esconder a família de Judeus em sua casa, terá que viver com uma angústia constante que é a possibilidade de você ser descoberto e arcar com as consequências mortais da cumplicidade. Estuprarão sua mulher e suas filhas, matarão seus filhos, depois, apenas depois, te matarão. E isso também irá acontecer com a família de Judeus. Todo seu esforço e sacrifício será em vão. Uma tragédia completa. Como você vai fazer para olhar para o rosto de sua mulher e de seus filhos e dizer que você irá arriscar a vida deles por causa de uma família de Judeus que nada tem a ver com a sua? Como pode, você, que ama a sua família, colocar seus familiares em tamanho perigo, os fazendo viver com a dúvida constante de que se amanhã estarão mortos. Serão condenados ambulantes, vagando pelas ruas com medo e paranoia. E caso você escolha negar refúgio, você os condenará, certamente, à desgraça. Não terá volta. À noite, a insônia virá mais severa. Ouvirá os lamentos dissonantes dos inocentes que você ajudou a matar e a desonrar da maneira mais mórbida que o coração humano pode conceber. Ouvirá sua culpa e sua covardia que apenas um tiro na cabeça poderá calar.
A madrugada está quase indo embora. O sol quer nascer. Daqui a pouco, terá que decidir.
Segundo Sartre, em situações extremas, a liberdade aparece em sua forma mais súbita, portanto, você nunca foi tão livre.
E daqui a alguns minutos, quando tiver que decidir, você entenderá e sentirá todo o peso de sua própria liberdade.

Esse é o primeiro texto sobre a série de textos que farei sobre o Existencialismo francês da década de 40.

Um comentário sobre “O ser humano nunca foi tão livre quanto no nazismo

  1. Jorge Elias disse:

    Muito didático o texto. Estou estudando teorias econômicas e considero fundamental o estudo da dialética. Estou iniciando esse estudo, e confesso que estou encantado com o pouco que já estudei. Obrigado.

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