O Pequeno Caos e a Nouvelle Vague

Curta, O Pequeno Caos – https://www.youtube.com/watch?v=nVfXsd45Mpo

Jump Cut – https://www.youtube.com/watch?v=1KUVwKp6MDI

Na década de 60, Zeitgeist, o conceito alemão de espírito do tempo, alagou a alma humana com um ímpeto iconoclasta, revoltado e contestador, típico da natureza juvenil. Tradições foram contestadas diante de um ideal libertário, que buscava ultrapassar os paradigmas para encontrar a medida de si mesmo nas multidões de protesto, nas ideologias políticas revolucionárias e nas roupas de teor oriental. Chamamos esse período de contracultura. Do ponto de vista da astrologia, que entra aqui como uma coincidência significativa, o mundo entraria na era Aquarius, período de grandes mudanças e quebra de tradições, na década de 60. Acreditando ou não nessa vertente esotérica, isso não deixa de ser curioso. O fato é que esse fenômeno mundial afetou a arte como um todo, inclusive o cinema.

Então, contrariando o cinema norte americano, tido como classicista, da década de 50, que representava o auge do conservadorismo estadunidense, um grupo de jovens cinéfilo franceses, por conta do barateamento dos equipamentos de filmagem e a mobilidade agora proporcionada pela tecnologia, iniciam suas carreiras na cinematografia. O cinema nunca foi o mesmo. Você já deve ter visto um filme de antes da década de 60, cuja atuação dos personagens é excessivamente teatral e o modo como eles estão distribuídos na cena e o modo como se movem por ela é igualmente teatral. Então, esse é o período clássico do cinema. Isso porque a linguagem do cinema, em um primeiro momento, derivou da teatralidade pela semelhança entre as duas artes, já que trabalhavam com narrativa, atores, caraterizações, enfim. E, a partir da década de 20, com o reconhecimento do potencial econômico gerado pelo cinema, os produtores de Hollywood -polo do cinema mundial -decidiram inventar normas que deveriam ser seguidas para atender a uma demanda industrial. Isso foi a causa de um classicismo bem estabelecido. E então, veio a contracultura e o grupo de cinéfilos franceses. Eles contestaram todos os paradigmas do modo tradicional de se fazer cinema e inventaram uma nova linguagem, tornando o cinema próximo daquilo que conhecemos hoje, em outras palavras, o cinema declinou sua teatralidade e se tornou mais cinematográfico. A linguagem do cinema foi pensada dentro de si mesma e não como uma adaptação linguística de outra arte. Dizemos, então, que, nesse momento, o cinema entra no modernismo.
Devo dizer aqui, como adendo, que quando me refiro à linguagem cinematográfica, não estou me referindo ao modo como os personagens encenam suas falas, mas no que diz respeito ao modo como a arte é feita como um todo, por exemplo, na Hollywood clássica não poderia haver cortes (mudança de um take para outro a fim de compor uma cena) em uma cena que retratasse alguma movimentação contínua. O Diretor Jean-Luc Godard, em seu famoso filme Acossado, inventou os Jump Cut, que são cortes que ligam um mesmo movimento em duas instâncias espaço-temporais distintas, a fim de dar dinamismo ao filme. Outra questão linguística, para ficar mais claro, foi o fato de que esse movimento cinematográfico buscou o improviso para como forma de obter um tipo de atuação mais realista. Então, linguagem cinematográfica, aqui, aparece como o modo como o filme é construído, o modo como o filme passa seu conteúdo, podendo ser com cortes que não interrompam a continuidade do movimento ou com Jump Cut e podendo ser com uma atuação mais realista ou mais teatral.
Esse movimento iniciado na França, que logo ganharia o mundo, chegando em Hollywood em 67, espalhou pelo universo cinematográfico um ideal de experimentalismo, produzindo ícones do cinema, inclusive brasileiros, como Glauber Rocha. Além de uma preocupação formal, isto é, que diz respeito à linguagem cinematográfica (o modo como passar um conteúdo), a Nouvelle Vague também tinha preocupações temáticas. Indo contra a moral cristã vigente, os filmes da Nouvelle Vague abordaram questões de ordem mais complexa, como maior exposição da violência, teor sexual explícito, cotidiano, ironia e a amoralidade, noção relativística no que diz respeito a moralidade. Nessa onda, nessa nova onda (Nouvelle Vague = Nova Onda), o sexo passou a ser algo desejável em um nível hedonista, sem qualquer pudor, sendo retratado os relacionamentos a três, traições feitas sem qualquer arrependimento ou uma desgraça narrativa que faça justiça a tal comportamento e comportamentos de uma sexualidade diversa. O cotidiano era o cotidiano verdadeiro dos jovens, e não aquela mítica dissimulada dos clássicos da década de 50. E até a violência, sempre vista como uma desgraçada ética, passou a ser encarada como divertida. É válido dizer que “A Primeira Noite de um Homem”, filme sobre um recém formado que se envolve sexualmente com uma mulher bem mais velha, casada com o amigo de seu pai, e “Bonnie e Clyde”, um filme sobre um casal de assaltantes da crise de 29 que é colocado dentro do filme como protagonistas carismáticos, representam a chegada da Nouvelle Vague em Hollywood, no ano de 67. Um fato também curioso é que, como a geração da Nouvelle Vague é composta por cinéfilos, é muito comum que um filme dessa época faça referências ao mundo cinematográfico, sendo autoconsciente de si mesmo. A metalinguagem e a intertextualidade são palavras chaves para entender o cinema que foi feito na Nouvelle Vague.
Quem aqui tem uma veia cinéfila já deve ter percebido que esse movimento é basal para o cinema contemporâneo e que existem diretores que são crias diretas desse movimento, como o mais cultuado dos últimos tempos, o cineasta Quentin Tarantino.
Então, esse foi o primeiro de uma série de textos sobre a história do cinema contada a partir de curtas. Espero que tenham se divertido. Até a próxima.

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